(A propósito da morte do Presidente Mário Soares (Lisboa 7/12/1924 – 7/1/2017)
“A democracia é o regime no qual ninguém está acima da crítica.
Muitas vezes, melhor do que longos discursos, argumentações cuidadas e
raciocínios sofisticados, é com meia-dúzia de traços e uma frase curta, certeira,
acerada, inteligente que se desafiam poderes, denunciam situações, de injustiça
ou de ridículos, e se diz que “o rei vai nu”.
Dr. Mário Soares (Presidente da República Portuguesa)
Em 1995, finalizava o Presidente da Republica Portuguesa o seu segundo e ultimo mandato (atingindo o limite máximo de 10 anos de presidência) quando fui chamado ao Palácio Presidencial para satisfazer um dos últimos desejos do Dr. Mário Soares como Presidente, homenagear o trabalho dos cartoonistas: “A exposição que tive a ideia de promover – escreveria o Dr. Mário Soares na Introdução do catálogo - no Palácio de Belém representa, em primeiro lugar, uma homenagem aos caricaturistas portugueses, que admiro e entre os quais conto alguns amigos. /…/ Esta exposição, realizada no Palácio de Belém, residência oficial do Presidente da República, que quis aberta ao público, pretende ter também um sentido pedagógico – lembrar que todos erramos e, por isso mesmo, devemos ser criticados, em particular os políticos, e saber corrigir a nossa acção através da crítica. É essa a superioridade da democracia. O riso é uma forma de inteligência e o talento para o provocar é um grande dom só concedido a alguns seres humanos.”
“Ao longo destes mais de vinte anos de democracia, tenho sido um dos alvos privilegiados de nossa democracia satírica, o que muito me honra. A circunstância de ter estado presente em diversas funções, tornou natural que assim acontecesse, à semelhança de tantos protagonistas, de todos os quadrantes, destas duas décadas tão ricas, interessantes e contraditórias./…/ Tudo isto tem servido de pretexto aos caricaturistas. E, também, naturalmente, os meus actos que mereceram reprovações, crítica, inevitáveis discordâncias, Por vezes, violentas e muito corrosivas.”
“Tenho-me esforçado, todavia, por considerar as caricaturas que de mim fazem como matéria de reflexão, achando-lhe quase sempre graça, mesmo que as considere tremendamente injustas. Com a passagem do tempo e a distância que traz, verifico que a sátira, frequentemente, perde muito da sua agressividade e que os autores e os visados se podem com ela divertir em conjunto. E o diálogo que daí ocorre acaba por tornar-se um salutar exercício democrático.”.
Os desejos de um Presidente são uma ordem e dessa forma concebi esta exposição como uma retrospectiva satírica aos vinte anos de democracia que então se comemorava. Assim a primeira caricatura foi um trabalho de João Abel Manta (Lisboa 1928) feito no momento em que o Dr. Mário Soares chegava a Portugal, vindo do exílio após a concretização da Revolução dos Cravos (25 de Abril de 1974) e as últimas as dos jovens que então despontavam na imprensa – Henrique (Cabreira 1969), Carlos Laranjeira (Lisboa 1970) e Ricardo Galvão (Lisboa1974) num total de trabalhos de 17 artistas.
A pedido do “Humor Sapiens” transcrevo aqui o texto que escrevi na altura (1995) para esta extraordinária exposição, realizada na casa do alvo satírico dos cartoonistas, o chefe máximo da política nacional, a qual teve mais de 40.000 visitantes, proporcionando não só a possibilidade do público visitar a exposição, como percorrer o Palácio Presidencial, normalmente só visitado pelos políticos e imprensa. (Esclarecimento – Apesar de referir a Humorgrafe como um organismo, na realidade é uma instituição fictícia onde só existe Osvaldo macedo de Sousa e a cumplicidade dos artistas que colaboram nas suas produções):
A humorgrafe é uma organismo aglutinador dos artistas plásticos ligados ao humor gráfico, que tem como missão dinamizar, divulgar e historiar este género artístico e, é a entidade responsável pela concretização deste desejo de Sua Exª o Presidente da República Dr. Mário Soares: reflectir sobre duas décadas de democracia fundamentais na vida política da nação, como terra de liberdade e que reestruturaram o sentido crítico-humorístico dos artistas da nossa praça.
A caricatura contemporânea não nasceu com o 25 de Abril, apenas medrou com ele. O Estado Novo, com os seus governantes caciquicos “botas de elástico”, tentou ao longo de várias décadas (1926 – 1974) destruir o pensamento de liberdade, o pensamento crítico, a sátira como opinião humana das realidades vivenciais. Só que o caricaturista, artista da contemporaneidade, criador por excelência, sempre soube tornear os entraves com maior ou menor felicidade. Perante a crescente proibição de criticar a política nacional, virou-se para a crítica internacional, para a crítica social ou para a crítica futebolística, onde muitas vezes veicularam sub-reptícias mensagens.
Esteticamente, a caricatura sempre esteve na vanguarda das artes em Portugal. Até finais dos anos 30, depois de se ter afirmado com a terceira geração modernista, por vezes com laivos de abstracionismo, teve ainda irreverências satírico-surrealistas de um Cândido Costa Pinto nos anos 40. Nos finais dos anos 50, a influência do estilo caligráfico de Steinberg, Siné e Sempé… fez-se sentir em obras de Agostinho, Cid e João Abel Manta. O primeiro exilar-se-ia em França e os outros passariam algum tempo desaparecidos da imprensa. Porém, e apesar destas excepções, a caricatura, com a permanência dos dinossauros do Estado Novo, foi-se enquistando num academismo bordaliano e anedótico, aliando esta estagnação estética a uma crescente dificuldade censória de tratar os assuntos mais políticos.
Assim, quando João Abel manta reaparece em 1970 no Diário de Lisboa, surge com uma nova estética, recuperando a caricatura gráfica para as vanguardas de então, sob influência norte-americana. JAM não reinventou a caricatura de imprensa, mas deu-lhe o alento da renovação, uma outra estrutura político-satírica, e uma nova terminologia conceptual. Um dos elementos novos foi o conceito de “Cartoon”. Desde sempre e pela influência francófona, da qual a nossa cultura é devedora, o termo Caricatura designa o género gráfico de humor de imprensa, englobando o retrato-charge, a sátira política e o desenho de humor. Após JAM instalou-se o divisionismo e subsistem os dois conceitos paralelamente: Caricatura = Cartoon.
A caricatura e o humor são uma fórmula de pensamento que se pode veicular pelo desenho, representação, escrita… Essa fórmula consiste em desconstruir o real, para o reconstruir (pela exageração, contraste, grotesco, paródia, alegoria…) numa diáfana utopia crítica, quer é reposta como uma nova realidade pelo riso. O jogo de inteligência que é o humor tem que ter em conta a cultura do público a que se dirige, tem que ter legibilidade de linguagem e, preferencialmente, ser inovador no pensamento e na estética.
Gracejam os humoristas, que as formas de fazer humor são doze( e já veem todas na Bíblia), o resto não passam de variações. Dentro do mesmo espirito, Christiano Cruz, em 1912, defende que n’ “a caricatura pessoal política /…/ um artista já não pode, hoje revelar grandes faculdades. As situações políticas repetem-se; as circunstâncias que as acompanham são hoje o que eram ontem e, consequentemente, as críticas análogas hão-de-ser. Depois de Raphael Bordallo Pinheiro ninguém fez nada na caricatura política que mereça menção: e embora a ela se dediquem… E aos quais, note, eu não penso negar talento, mas ao examinar uma página dos jornais humorísticos actuais eu vejo sempre uma página do jornal “António Maria”, apenas virada do avesso.” Uma análise demasiado critica para os colegas de profissão, um tanto exagerada, mas verdadeira. É que mudam-se as moscas fica a mesma m…, e se os políticos mudam, as políticas mantém-se, assim como os seus oportunismos, autoritarismos, erros, sendo as críticas sempre as mesmas. Se hoje publicarmos os desenhos de Raphael Bordallo Pinheiro, alterando apenas os fácies dos políticos, vemos quão actuais estão, apesar da mudança do regime (antes monárquico), e de século (XIX). Por tudo isto o caricaturista / cartoonista tem quer ser um criativo de alto potencial filosófico, para repetir a crítica nas mais diversas variações, chamar a atenção da sociedade para aquilo que os “Zé Povinhos” veem, mas recusam mudar.
Durante a ditadura, a censura obrigou os criativos a um jogo subrepticio de inteligência e desinteligências censórias que deu azo a obras geniais de irreverencia. Só que, o proibido – a acção de sufocação não é recomendável, nem para a sociedade saudável, nem para o caricaturista. A Democracia é o habitat natural do humor. O 25 de Abril de 1974 foi o início de uma nova vivência, o primeiro dia do resto da nossa vida, o recuperar da dignidade de um povo, a reconquista do sorriso.
O caricaturista, consciência da sociedade, com a qualificação específica de criar, sonhar, ser irreverente e consciente do que se passa à sua volta, é uma consequência natural à existência do político democrata, pois só assim se consegue um equilíbrio ecológico na sociedade. Apesar do político desejar, ou afirmar que não necessita do humorismo gráfico, sem ele, perde a noção da sua popularidade, perde a noção da consequência dos seus actos na sociedade, perde a noção dos seus deveres e razões da sua eleição, perde o contacto com a realidade.
Como dizia o jornalista e político João Pinheiro Chagas “não há Homem verdadeiramente célebre se dele se não contarem, pelo menos, seis ou sete anedotas”. O político ao aparecer na sátira política é como que entrar no “álbum das glórias”. O político costuma ser uma caricatura em bruto e o caricaturista um artesão que o lapida.
O Dr. Mário Soares foi a personalidade mais caricaturada ao longo dos últimos 20 anos (referia-me a 1974 – 1995). Primeiro porque esteve sempre activo, actuante e controverso como Ministro, oposição, Primeir-Ministro, oposição e Presidente da República. Depois, porque o seu fácies é de fácil caracterização. Inclusive o povo alcunhou-o caricatural e carinhosamente de “bochechas”. Só que. Se esse é o elemento mais directo e mais fácil, o seu olhar é muito mais importante, e explorado por diversos caricaturistas. Depois existem todos os tiques, formas de estar, que no Dr. Mário Soares talvez se possam sintetizar no seu gosto de contacto com as massas, o gosto de usar todo o género de chapéus, a paixão pela cultura, a curiosidade do saber, a sua bonomia e símbolo dos brandos costumes do nosso povo. Essa forma de ser, levou ao surgimento da mitificação de uma monarquia caricatural apaziaguada por um Rei D. Mário I, Creio que tão cedo, não haverá outro político que o povo tão carinhosamente entronize, como faz com o Dr. Mário Soares, gostando dele ou não. Ao assumir esta sátira ao seu passado, dentro de portas do Palácio Presidencial acontece um gesto magnânimo de humor e RISO COM, exemplo que deveria servir de lição a muito político, empresário…